Álbum de estréia do RPM é a equação certeira entre o Rock, o progressivo, new romantic, o dark e as pistas de dança.
Pense em um mundo sem internet, no qual as pessoas se correspondem por cartas enviadas pelo correio. Textos são escritos à mão ou nas pesadas estruturas de ferro de máquinas tipográficas. Videocassetes são trambolhos caríssimos que começam a trocar o inviável sistema de beta para o industrial VHS. Álbuns são bolachas pretas de vinil com imensas capas de papelão. Novas bandas são descobertas através de toscas gravações de gravações em cassete. E há uma dificuldade enoooorme de importação de discos.Ficção? Não, pura realidade. Em 1985, ha 30 anos atrás. O abismo que separa a tecnologia desse ano para o atual também é gigante no que se refere às configurações político-econômicas do planeta. Saddam Hussein e o Iraque eram um forte aliado dos Estados Unidos, que, por sua vez, ainda estavam preocupados em armar-se para duelos de blefe e imaginação com a União Soviética – as prioridades eram a disputa nos esportes olímpicos, a corrida espacial e botões vermelhos prontos para ativar mísseis com capcidade para destruir todo oterritório inimigo.
Já a antiga união de países centrada no Kremlin era o centro de comando do leste europeu, separado do Ocidente por um extenso muro e baseado na mão-de-ferro do regime comunista. A China era uma vasta terra de incógnitas que tentava se adaptar às “novidades” vindas deste lado do mundo, enquanto o Japão reservava sua seminal cultura de mangás e animes aos olhos puxados da própria terra do sol nascente.
E o Brasil... Bem, aqui não tinha eleições diretas para presidente e a gente experimentava o gosto do primeiro governo não-militar desde o golpe de 1964.
Roqueiro brasileiro se libertava da máscara de bandido imposta à revelia desde os tempos da ascensão intelectual da esquerda que falava de flores e condenava em passeata a guitarra elétrica como símbolo da rendição da arte da colônia à exploração dos mestres supremos do capitalismo.
Neste cenário – aparentemente pré-histórico para quem, nos dias atuais, ainda não saiu (ou acaba de sair) da adolescência – a toda-poderosa gravadora CBS decide apostar em uma leva de novas bandas.
A febre das danceterias nos grandes centros está à toda e no mês de janeiro o sucesso da empreitada do Rock In Rio revela que todos os jovens queriam rock. Até a Globo se rende ao rock, com uma leva de programas (Mixto Quente, Armação Ilimitada, Clip Clip). As rivais Warner (Kid Abelha, Barão Vermelho, Lulu Santos, Ira!, Ultraje A Rigor, Titãs, Magazine), RCA (Gang 90, Lobão – com e sem os Ronaldos) e EMI (Blitz, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana) já saíram na frente na disputa pelo segmento.
Enquanto isso, o máximo que a Sony contabiliza é uma carreira solo de sucesso (o tecnopop “Menina Veneno” de Ritchie) e outra promissora (Léo Jaime, que, desgarrado do João Penca e Seus Miquinhos Amestrados, atualizava o pop da Jovem Guarda para os tempos de new wave). E só.
Uma nova leva bandas sai dos palcos das casas noturnas de estética néon e chão quadriculado em preto e branco para assinar contrato com a gravadora. Vários compactos 7” chegam às lojas – seus lados A estão reunidos na coletânea Rock Wave – pau-de-sebo de nome vagabundo, capa estlizada (um casal desenhado sob códigos e cores da moda) e algumas promessas. Nomes como Telex (“Só Delírio”) e Capital Inicial (“Descendo o Rio Nilo”) ficaram só nas promessas do primeiro hit – o Capital logo se mudaria para a Polygram e, então sim, faria decolar sua carreira. Outras formações, no entanto,
entraram para o limbo como nomes que a história fez questão de esquecer – caso do impagável “Omar e os Cianos”(?!) e seus versos “Abominável homem das neves/ Quero quebrar este gelo/ Vou esperar que você se entregue”.
Há, porém, dois acertos. Um chama-se Metrô. Formado entre jovens colegas de ascendência francesa, o grupo logo chama a atenção por arranjos modernos (leia-se batidas dançantes e recheadas de sintetzadores), melodias certeiras e letras ingênuas cantadas guiadas pelo doce sotaque da bela Virginie. “Beat Acelerado”, “Sândalo de Dândi” e “Tudo Pode Mudar” garantem boas execuções radiofônicas e o sucesso do álbum de estréia da banda que antes chamava-se A Gota Suspensa e se dedicava às sonoridades progressivas.
Outro tiro certo – e que também trocara o progressivo pela new wave – é o RPM. A origem remonta a um projeto criado pelo tecladista Luiz Schiavon e o baixista Paulo Ricardo, chamado Aura.
Depois de três anos de ensaios apurados e nenhum show no currículo, Luiz encantou-se pela música eletrônica e pela tecnologia dos novos sintetizadores, enquanto Paulo decidiu morar na Europa – primeiro na França e depois em Londres, de onde escrevia sobre novidades musicais para a revista Somtrês e se correspondia com freqüência com o amigo das teclas.
Este choque de personalidades impulsionou a criação do RPM depois que o trabalho da dupla foi retomado em São Paulo – como bem observou o jornalista Ricardo Alexandre em seu livro Dias de Luta, era um “formato Eurythmics, somando prog rock, new romantic, o dark e as pistas de dança. Completavam a formação o guitarrista Fernando Deluqui (que tocava com a ex-Gang 90 May East), o baterista Charles Gavin (recém-saído do Ira!).
“Louras Geladas” foi a música escolhida para o compacto – já gravado sem Gavin, que largara o trio para ir ao encontro do ecletismo dos Titãs. A música já era um hit das danceterias e logo tomou de assalto as paradas de sucesso das rádios. A letra, um delicioso paralelismo entre dor-de-cotovelo e aquele porre-bola-para-frente (“Na madrugada, na mesa do bar/ Louras geladas vêm me consolar”), cai no gosto do público de todo o país e leva a banda a gravar rapidamente seu álbum de estréia, já com seu futuro definitivo baterista Paulo P.A. Pagni (ex-Patife Band), que, curiosamente, não aparece efetivado como membro nas fotos de capa e contracapa.
No mês de maio chega às lojas Revoluções Por Minuto, no vácuo de um país ainda perplexo com a morte de Tancredo Neves (o primeiro presidente não-militar em duas décadas, mas que não chegara a assumir o posto – fora internado na véspera da transmissão das faixas por causa de uma diverticulite).
Há uma segunda faixa de trabalho, “Olhar 43”. A composição é totalmente fora dos padrões pop: não há refrão, os versos são complicados (como “É perigoso o seu sorriso/ É um sorriso assim jocoso, impreciso/ Diria misterioso, indecifrável riso de mulher/ Não sei se é caça ou caçadora/ Se é Diana ou Afrodite ou se é Brigitte/ Stephanie de Mônaco, aqui estou, inteiro ao seu dispor”) e a batida deixa de lado a malemolência da new wave para encarar um tecnopop mais acelerado, duro e reto. Mesmo assim, o misto de paixão platônica e pretensa declaração de amor de “Olhar 43” também emplaca nas rádios e abre caminho para que outras faixas, mais politizadas e/ou conceituais, façam o mesmo.
O que chama a atenção em Revoluções Por Minuto é a capacidade do RPM de falar a sério em um terreno onde impera a diversão. As letras – assinadas por Paulo Ricardo – não levam para as pistas de dança apenas excitação sexual e amores frustrados. Tratam também de temas como política internacional e transformações sócio-econômicas.
Outro elemento estranho são os climas soturnos dos arranjos de Luiz Schiavon – herança dos tempos londrinos do baixista, que viu in loco o pós-punk britânico.
Lado A, lado B
“Rádio Pirata” abre o álbum escancarando a carta de intenções da banda e, ao mesmo tempo, trazendo tudo aquilo que uma canção pop perfeita deve ter. A letra é o grande hino da geração do rock brasileiro dos anos 80, que anuncia a invasão do mercado e a estabilização de um novo segmento fonográfico, outrora considerado fora-da-lei (“Abordar navios mercantes/ Invadir, pilhar, tomar o que é nosso/ Pirataria nas ondas do rádio/ Havia alguma coisa errada com o rei/ Preparar a nossa invasão/ Fazer justiça com as próprias mãos/ Dinamitar um paiol de bobagens/ E navegar o mar da tranqüilidade/ Toquem o meu coração/ Façam a revolução/ Que está no ar, nas ondas do rádio/ No submundo repousa o repúdio/ E deve despertar/ Disputar em cada freqüência/ Um espaço nosso nessa decadência/ Canções de guerra, quem sabe canções do mar/ Canções de amor ao que vai vingar”).
Os versos por um lugar ao sol, realçados por uma irresistível batida disco no refrão, retrata com perfeição o organograma da banda: Schiavon, que assina dez das onze composições com o parceiro Paulo Ricardo, é quem traça as bases e comanda os riffs nos sintetizadores.
Deluqui se encaixa apenas em pequenas brechas harmônicas (como no tosco riff que abre e encerra a música) ou em fraseados, solos e intervenções que não embolam o meio-de-campo dos arranjos feitos por Luiz.
E “Rádio Pirata” é só a abertura de um lado A milimetricamente calculado para fazer o disco dar certo. Afinal, a primeira metade do disco traz o hino da banda, os dois primeiros compactos de sucesso (“Louras Geladas”, “Olhar 43”) e outros dois hits em potencial que depois também vieram a tocar nas rádios.
“A Cruz e A Espada” é balada new romantic sem qualquer vergonha de sua condição. Mistura batidinha bossa nova, percussão leve, harmonia ao violão e solos de clarineta, em alternâncias entre estrofes e refrão que repetem o esquema de calmarias e crescendos.
Já “Estação no Inferno” é tecno quanto pop – tem até refrãozinho reggae, com direito a congas e versos fuleiros como “Outro inverno gela em meu coração/ Neste inferno é sempre a mesma estação”. Previsível e fuleira como estagnada MPB radiofônica que imperava no país no final dos anos 70/começo dos 80, é a faixa destoante da qualidade de todo o resto do álbum.
Completa o lado A, a punkérrima “A Fúria do Sexo Frágil Contra o Dragão da Maldade”, mais uma letra em que Paulo Ricardo exala sexo por todos os lados:“Uma menina enlouquecida/ Pela cidade, a sina e a buzina/ Vontade férrea, feminina fúria/ Determinada, perigo, prazer/ (...) Rímel nos olhos, batom que mancha/ Fuma, se perfuma e o penteado não desmancha/ Quem sabe é mãe, mãe de família/ Quem sabe até é sua própria filha”. Além da velocidade ao extremo, a faixa traz ainda o trecho mais pesado do disco, composto por uma massacrante batida industrial em loop.
Se as primeiras fichas do RPM apostam em uma cara mais pop, no lado B o grupo reserva uma surpresa aos fãs de última hora. Canções sombrias, lentas, de maior duração. Os sintetizadores de Schiavon costuram texturas mais densas e pesadas, enquanto Paulo Ricardo se esmera em cantar versos mais engajados, cheios de referência às conjunturas sócio-políticas do Brasil e do mundo da época. Sai o new romantic da etapa inicial e o tecnopop agora divide espaço com uma grande herança do pós-punk britânico (Bauhaus,
Siouxsie & The Banshees, PiL).
Uma longa introdução de mais de um minuto e alternância de ritmos marcam o b-side inicial “Liberdade/Guerra Fria”. Já no título, Paulo brinca com o jogo de nervos entre Estados Unidos e União Soviética que por algumas décadas deixou o mundo esperando a possibilidade de uma guerra. Se o duelo imaginário entre as duas superpotências nunca chegou a existir, outro conflito citado na letra permanece explosivo e sanguinário até hoje, longe de qualquer solução (“Eu já nem sei mais quem sou/ Desse jeito não se vive/
Nova York ou Moscou/ Palestina ou Tel-Aviv”).
“Juvenília”, por sua vez, puxa o foco para a bandeira verde-e-amarela. Em um arranjo quase sem guitarra (Deluqui, que “aparece” apenas em um solo na gravação original, ganharia mais espaço ao violão na regravação feita para o álbum Ao Vivo MTV, em 2002) e baseado em teclados superpesados, a canção é uma grande crítica aos tempos de terror e mentiras impostas pela recém-enterrada ditadura militar. Seguindo um esquema convencional de estrofe e refrão – sem, contudo, repetir um único verso –, Paulo Ricardo fala de exílio, sofrimento e traição (“Sinto um imenso vazio/ E o Brasil/
Que herda o costume servil/ Não serviu pra mim/ Juventude/ Aventura e medo/
Desde cedo/ Encerrada em grades de aço/ E um pedaço do meu coração é teu/ Destroçado com as mãos/ Pelas mãos de Deus/ E as imagens. Transmissões divinas/ E o cinismo/ E o prtestantismo europeu/ Parte o primeiro avião/ Eu não vou voltar/ E quem vem pra ficar/ Pra cuidar de ti/ Terra linda/ Sofre ainda a vinda/ De piratas/ Mercenários sem diração/ E eu até sei quem são/ Sim, eu sei/ Você sempre faz confusão/ Diz que não e vem/ Vem chorando/ Vem pedir desculpas/ Vem sangrando/ Dividir a culpa entre nós”) e faz da canção um dos grandes hinos do rock nacinal dos anos 80.
“Pr’esse Vício” é dark até a medula. O riff de baixo – com efeit exagerado de flanger – remete diretamente aos tempos mais soturnos de Siouxsie & The Banshees e volta a falar sobre conflitos religiosos (“Não tem mais tempo/ Não tem mais ninguém/ Rezando nos templos/ Em Jerusalém/ (...) Não tem mais tempo/ Não vem mais ninguém/ Explodem os templos/ Vão dizendo amém”).
Os ares sombrios permanecem em “Sob A Luz do Sul”, mesmo com a batida levemente funkeada. Na letra, o baixista faz uma ode ao “sangue de coruja”: “Quero das horas escuras/ Cumplicidade em qualquer loucura/ (...) Já não sou mais quase nada/ Sob a luz do sol”.
Para completar o álbum, o encerramento vem com a regravação de “Revoluções Por Minuto”, b-side do compacto de “Louras Geladas”. Sobre um interminável loop progressivo criado no computador (que sugere vinheta de telejornais), a letra antecipa aquilo que a gente viria a conhecer posteriormente sob códigos como globalização, internet e CNN. “Sinais de vida no país vizinho/ Eu já não ando mais sozinho/ Toca o telefone/ Chega um telegrama, enfim/ (...) Nos chegam gritos da Ilha do Norte/ Ensaios pra Dança da Morte/ Tem disco pirata/ Tem videocassete até/ Agora a China bebe Coca-Cola/ Aqui na esquina cheiram cola/ Biodegradante/ Aromatizante tem”. O arranjo ainda conta com barulhos de transmissões de telex e notícias perdidas no dial da rádio, para terminar com barulho de arrastar de correntes e uma melancólica batida tribal. Passaríamos a ser todos escravos? O futuro sombrio projetado por George Orwell no clássico 1984 estaria prestes a se tornar realidade?