Na lista das 100 músicas mais tocadas em 2014, o gênero é representado apenas pelo Skank, na 93ª posição; veteranos, novatos e figurões da indústria levantam teorias sobre o fenômeno
O rock nunca esteve tão na moda no Brasil. Ao menos a jaqueta perfecto e as tachinhas punk não saem das vitrines: viraram itens obrigatórios no figurino de músicos, sejam eles do pagode, sertanejo ou funk. Anitta, por exemplo, “viralizou” Ramones e Nirvana junto a um público que não é lá muito fã de guitarras distorcidas ao usar as camisas-símbolo das bandas. Seguidores da cantora que talvez nem soubessem citar um hit dos grupos passaram a usar e abusar do vestuário. Mas esse boom em nada tem ajudado o rock nacional, cada vez mais presente no underground e deixado de lado pelo público brasileiro de rádio, que hoje vê os áureos tempos do BRock 80 na História. Segundo um levantamento da empresa de aferição Crowley, entre as músicas mais tocadas no dial em 2014 no país, a única banda nacional a figurar no top 100 é o Skank, que ocupa a 93ª posição com a canção “Ela me deixou”, do último disco dos mineiros, “Velocia”. Enquanto isso, figura em primeiro lugar “Domingo de manhã”, dos sertanejos Marcos & Belutti.
O Ecad (Escritório Central de Arrecadação) divulgou seu top 50 nacional — o top 100 só será conhecido em abril —, em que não há representantes do rock nacional. O número 1 nas mais tocadas é “Mozão”, interpretada pelo também sertanejo Luccas Lucco.
— O rock já não é a preferência do grande público, e acho que isso é uma peculiaridade brasileira. O rock gringo se reinventou. Arcade Fire e Arctic Monkeys, por exemplo, ganharam uma importância enorme, lotam festivais e levantam outras bandas. Não temos um caso semelhante no Brasil. O país precisa amadurecer para gostar de músicas mais elaboradas, sem refrãos pobres — avalia Samuel Rosa, cantor do Skank. — Pertencemos à última leva de bandas que conseguiram se destacar, mas estaríamos melhores se houvesse uma renovação do rock. Se novas bandas aparecessem, talvez não estivéssemos no 93º lugar. No meio de tanta música de massa do sertanejo e funk, com investimentos surreais, estar entre os 100 em 2014 é uma vitória tão grande quanto estar entre os 10 em 1994. A gente talvez deixasse de conhecer o Renato Russo se ele estivesse começando hoje, porque as pessoas só dão atenção para Gusttavo Lima. Na época da Legião Urbana já existiam esses Gusttavos, mas o rock conseguia romper as barreiras.
APEGO AOS NOMES MAIS ANTIGOS
O cenário foi se construindo ao longo dos anos, com aparições cada vez mais tímidas dos roqueiros brasileiros. Em 2012, o Charlie Brown Jr. foi a banda mais bem colocada, na 50ª posição, com “Céu azul”, segundo a Crowley. Vale lembrar que a banda estava sem gravadora e lançou “Música Popular Caiçara” naquele ano, de maneira independente. Em 2013, ano das mortes de seus integrantes Chorão e Champignon, o grupo de Santos também liderou entre os representantes do rock, na 43ª posição, com “Meu novo mundo”. Naquele mesmo ano, ainda apareceram O Rappa, na 68ª colocação, com “Anjos (para quem tem fé)”, e o Jota Quest, com a versão de “Tempos modernos”, de Lulu Santos, em 90º. Por que os ouvintes estão indo na direção oposta ao rock nacional? Alexandre Hovoruski, diretor artístico da Rádio Cidade, faz sua aposta:
— O rádio ainda é o grande veículo associado à música no mundo. Temos tentado mostrar trabalhos novos, mas bandas consagradas nunca agradaram tanto. Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e Cazuza dominam boa parte da execução. É legal por um lado, mas problemático por outro, pois significa que a nova geração não está tendo vida fácil. Mas, assim que estourarem algumas, mudará tudo — aposta Hovoruski. — O rock no Brasil passa por um momento de grande mudança. O “quase” fim das gravadoras, a falta de investimentos, a curadoria, o fato de ficarmos oito anos sem rádios dedicadas ao gênero (no Rio) foram pontos negativos e decisivos nessa queda. É a hora de reinventar. A internet chama a atenção, mas, se não houver consistência, vira mais um caso de 15 minutos de fama. No Brasil, o sertanejo vem dominando as paradas, pois é, sem dúvida, o braço musical mais organizado e com mais dinheiro hoje.
Com os álbuns “Titãs” (1984), “Televisão” (1985) e “Cabeça Dinossauro” (1986), a banda de Tony Bellotto, Paulo Miklos e companhia lançou hinos de rock que são cantados até hoje em shows lotados. Há mais de 30 anos na estrada, o guitarrista Bellotto já ouviu inúmeras teorias sobre a morte do rock.
— Daqui a pouco, o público brasileiro vai se cansar do sertanejo e voltar a ouvir rock, que é um movimento sempre presente na História — diz Bellotto. — Fora do Brasil, ele se mantém entre os grandes, aqui está no subterrâneo. Nós é que estamos vivendo uma fase complicada, cultural, social e politicamente. E há coisas que só o rock consegue fazer, como música de protesto. O ano de 2014 foi muito rico em produção artística no rock, muitas bandas fizeram discos de excelência. É uma dicotomia, porque nada aparece nas rádios.
Nos anos 1980, tempos de ouro do gênero, existia uma premissa: “Se você tocasse guitarra e tivesse nascido em Brasília, já teria um contrato garantido nas gravadoras”, lembra Samuel Rosa, cujo grupo, o Skank, formado nos anos 1990, viveu o último suspiro do nascimento de grandes bandas de rock nacional, ao lado de Rappa e Los Hermanos, entre outros.
Nos anos 2000, o emo surgiu com fôlego, mas por onde andam Restart e Fresno nas paradas de sucesso? Apesar do momento negativo, tem gente experiente que aposta numa virada, como Sérgio Affonso, presidente da Warner Music Brasil, que trabalha há 48 anos na indústria fonográfica.
— Num cenário justo, o Brasil deveria ter ao menos 20 bandas de rock entre as 100 mais tocadas. O resultado de 2014 chegou ao ápice do ruim. Há duas tentativas heroicas: a Rádio Cidade e a 89 FM (de São Paulo). As gravadoras precisam fazer a roda girar e buscar outros nichos — analisa Affonso. — Mas sinto que estamos nos aproximando de uma mudança, porque o mercado é cíclico. Tanto que estamos em negociação com uma banda nova de rock, a carioca Canto Cego. Estamos debatendo uma política para promovê-los, vamos ter que reinventar esse trabalho. A única certeza que temos é que a internet é fundamental. Ela já saiu da obscuridade da pirataria para a absoluta relevância, talvez mais até que o disco físico, em muitos casos. É preciso que algum artista lidere um novo movimento.
GOIANOS PARA EXPORTAÇÃO
Ainda segundo Affonso, as bandas novas têm a facilidade da internet, mas não conseguem produzir discos profissionais, então as rádios também não têm material de rock de qualidade para tocar. De fato, há grupos elogiados pela crítica e que vêm construindo, com a web como principal aliada, um público fiel pelo país. É o caso dos goianos Boogarins, cujo primeiro disco foi lançado em 2013. Eles criaram uma rede de contatos e fizeram, em 2014, uma turnê internacional com 60 shows em 11 países, incluindo os festivais South by Southwest, no Texas, e Primavera Sound, em Barcelona. Mas nem sinal de suas canções em rádios brasileiras.— Existe produção, existe público. Arte está sendo feita, rock está sendo feito. Mas não é onde o dinheiro está circulando agora. O rock morreu para a grande massa — comenta o guitarrista Benke. — As pessoas ainda estão presas às mesmas bandas dos anos 1980 e 90. Não é culpa do público, mas de quem divulga a arte. Como temos muitos shows, conseguimos nos bancar só com a banda. Mas, em meses de agenda menos cheia, fica complicado.
Paradoxalmente, a produção de rock no Brasil só aumenta. Festivais como o Bananada, em Goiânia, e o Picolé, que acontece há dois verões no Circo Voador, promovem a circulação de novos nomes. Mas a postura das bandas talvez seja muito diferente daquelas que dominaram o país há 30 anos.
— O rock hoje está mais sisudo. O interesse das bandas em conversar com o grande público diminuiu. Elas querem cada vez mais estar na cena alternativa, com canções mais conceituais e menos comerciais — opina Samuel Rosa. — A Legião Urbana dialogava com o público de rock, mas também com quem não era desse nicho, assim como Titãs e Paralamas do Sucesso. Eles faziam um trabalho de qualidade e ao mesmo tempo abrangente. A MTV também tem culpa, porque deixou de ser uma plataforma de vanguarda e passou a ser divulgadora de bandas de molecada. Quando o Skank surgiu, ao lado dos Raimundos, todos ouviam “Garota nacional” e “Mulher de fases”, porque sempre tivemos vontade de falar para o grande público. A Nação Zumbi, por exemplo, preferia o underground. Eu sempre falava com o Chico Science: “Vocês estão privando a população de conhecer música de qualidade”, porque eles se recusavam a ir a meios populares, como o Faustão.
PASSIVIDADE POLÍTICA
A banda de “Mulher de fases” também precisou se reinventar para não depender das rádios e gravadoras. Novamente em alta depois de uma década de vacas magras, os Raimundos usam a internet e o boca a boca para manter seus shows cheios. Assim, Digão e companhia foram escolhidos para abrir os shows do Foo Fighters pelo Brasil, em janeiro. O cantor e guitarrista aponta a passividade política como um dos fatores de fraqueza para o rock nacional:— O que aconteceu com o Brasil? Um país que aceita calado toda essa roubalheira está longe de ser rock’n’roll, pois foi sempre através do rock que se questionou o que estava errado. O verdadeiro rock não morreu, está no seu habitat natural, o underground.
Canisso, baixista dos Raimundos, concorda com o companheiro e cita mais fatores:
— É difícil competir com gêneros que têm muito dinheiro para gastar em divulgação e até jabá. No rock, as bandas jogam nas 11: compõem, divulgam, tocam, produzem. Em outros gêneros os artistas recebem tudo pronto: aulas de música, stylist, produtores. Estouramos numa época em que pessoas funestas ainda não tinham percebido o potencial de ganhar dinheiro com jabá. A época de “Mulher de fases” era mais romântica. Nossa vida é muito mais difícil hoje. Existe uma máfia dizendo que o rock acabou, gastando dinheiro para que outras coisas não aconteçam. Se eu estivesse focado em dinheiro, seria baixista de um grupo sertanejo. Ser do rock não é só se vestir com camisa de banda, é um estilo de vida. Todo mundo gosta de tirar uma casquinha, como Anitta, com roupas e acessórios de bandas, e até o Luan Santana.
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/musica/rock-nacional-vira-raridade-no-radio-volta-para-underground-15391753